Vicente Fragoso já estava à ponto de buscar ajuda psiquiátrica profissional.
Quando uma Testemunha de Jeová percebe claramente que há problemas no fundamento doutrinário da sua religião, não é incomum ela se perguntar sobre quem de fato está em ignorância e quem está promovendo o engano. Afinal, não viram os anciãos, homens que se dedicam tanto a estudar as publicações da Torre de Vigia, a falha doutrinária? Se viram, por que não compartilham o que entenderam? Na questão do sangue, por exemplo, não perceberam os irmãos mais experientes e os anciãos a falta de sentido quando a Sociedade dividiu o sangue em componentes primários e componentes secundários, proibindo os primeiros e liberando - desculpe, transformando em "questão de consciência" - os últimos? Estariam os anciãos em ignorância? Não entenderam? Ou estariam eles a promover o engano? Para responder a essas perguntas, talvez seja de valor revisitar alguns aspectos da estrutura da Organização. Vejamos.
Hierarquia Centralizada e... Autoritária
A "organização" das Testemunhas se auto-intitula a "organização de Deus"; em sendo assim, ela não vê a menor necessidade de consultar as congregações ou os anciãos, e muito menos os publicadores, sobre decisões administrativas e, menos ainda, doutrinárias. Tem-se dito, e com muito fundamento, que a organização das Testemunhas em muitos aspectos assemelha-se a certos governos comunistas que ditavam muitos - senão todos - os aspectos da vida dos cidadãos. A Sociedade tem manuais para tudo, desde como a matriz em Brooklyn funciona até como as congregações devem operar, procedimentos judicativos etc, passando pelo relacionamento das várias filiais no mundo com o comando central. A Sociedade Torre de Vigia - por mais doloroso que isto seja para uma Testemunha - é uma organização autoritária. Não é de surpreender que esse autoritarismo se reflita também nas congregações. Por exemplo, dificilmente permite-se a congregação decidir nem quanto ao horário das reuniões; quando muito, permite-se a congregação votar em opções prontas já decididas pelos anciãos. Mais importante que isso, o conteúdo das reuniões é imposto pela liderança. Embora dá-se a isso nomes interessantes tais como "arranjo teocrático", o que isto realmente significa é bem conhecido mesmo pelas Testemunhas: Ausência de discussão do assunto. Claro que numa organização com esta estrutura, o fluxo de informação tem que ser controlado. Quanto sabem as filiais, as congregações e os anciãos? Consideremos.
Quanta Informação?
Um dos aspectos de qualquer organização centralizada e autoritária é o controle do fluxo da informação. A Sociedade é uma organização secretiva. Ela adotou o conceito de que as informações devem ser passadas 1) somente para quem dela precisa e 2) somente o necessário para que o detentor dela desempenhe suas tarefas. Apenas alguns exemplos disso serão suficientes: 1) Alguns argumentariam, e estão corretos, que seria de se esperar algum filtro de informação pois isso é comum em quase qualquer que seja o tipo de organização. Mas acha correto alguém lhe ensinar algo durante décadas e depois lhe negar uma informação relacionada com este ensino que tem a ver com a sua própria vida? Neste exemplo, que é um misto de controle de informação com a prática do engano, vê-se que é exatamente isto o que acontece. Pode ser visto na nota
[1] como a Sociedade tenta convencer até mesmo os anciãos das Comissões de Ligações com Hospitais que nada mudou com relação ao sangue. 2) Uma das regras que o betelita aprende quando chega em Betel é a de não revelar e de não perguntar. Se um companheiro de quarto trabalha na gráfica e revela qual será o lançamento do próximo congresso, será punido por isso. Se seu companheiro perguntar sobre isso, será no mínimo advertido. 3) Se você for uma Testemunha de Jeová, sabe que após uma desassociação que ninguém entendeu porquê, para suprimir comentários os anciãos normalmente argumentam que os irmãos não tem todos os fatos. E eles estão certos. Não se tem todos os fatos justamente por causa da secretividade das Comissões Judicativas, o que somente aumenta o poder de controle dos anciãos
[2]. Por que a Sociedade e os anciãos fazem isso? Seria isto parte de alguma "
estratégia teocrática"? A resposta a essa pergunta pode não ser tão simples assim. Não podemos dizer, de homens basicamente bons e gentis, que deliberada e descaradamente enganam. Considere o que uma pessoa que não é Testemunha de Jeová explicou sobre isso e compare com o que ocorre com as Testemunhas.
Uma Não-Testemunha Nos Escreve
A Igreja Universal do Reino de Deus passa a impressão de ser uma igreja onde há uma constante preocupação com a realização material. É muito comum, nas entrevistas pela televisão, por exemplo, os felizes fiéis relatarem quão bem materialmente estão. Os pastores nas igrejas enfatizam que é preciso 'ofertar muito' para receber muito em retorno. Muito bem, pediu-se a uma pessoa, que foi durante anos cativa dessa igreja, que tecesse alguns comentários sobre quem era quem, quem sabia o quê dentro da hierarquia, quem enganava e quem era enganado. O que encontra-se abaixo é uma consideração que muitos veriam como objetiva, equilibrada e esclarecida do assunto. Veja primeiro qual foi a pergunta feita:
Caro amigo,
quando você contou do seu martírio para se livrar da IURD, eu te perguntei quem, na hierarquia da igreja, tinha conhecimento das tramóias, e quem estava tão enganado quanto você estava. Não lembro exatamente qual foi sua resposta. O que eu gostaria é que você refletisse sobre isso e me dissesse o que acha, pois quero ver se há alguma semelhança com as Testemunhas de Jeová.
Na resposta do nosso amigo, ele primeiro alerta para o perigo de rotular as pessoas ou achar uma resposta simplista demais para o problema, e depois ele discorre sobre o que pode ser a racionalização básica para os fiéis e pastores da Universal fazerem o que fazem.
Veja agora, na íntegra, sem edição, a resposta obtida:
Isso foi uma coisa que me encafifou muito quando comecei a recobrar um pouco da razão, da lucidez. A maioria das pessoas faz uma idéia de que "Esses pastores são um bando de safados!". É muito fácil pensar assim. Aliás é a maneira mais fácil de se posicionar sobre esta e muitas outras questões semelhantes. Se o país não vai pra frente "é o governo que não presta", se o marido abandona a esposa "era um canalha", se o filho vai mal na escola "é vagabundo". É cômodo pensar assim, não é? Você já reparou como temos todos uma certa propensão a pensar sempre do modo mais fácil, mais cômodo? Existe um provérbio antigo que diz "a vaca sempre sobe o morro pelo caminho mais fácil".
Uma vez vi uma entrevista do Clodovil onde ele dizia que sua fé religiosa era a de que a reencarnação existe e que o último estágio evolutivo da alma é quando o sujeito nasce como homossexual. Não quero questionar se ele está certo ou errado. Quero apenas dizer que essa visão das coisas é a mais cômoda possível pra ele. Assim como é cômodo pra um branco acreditar que negros em geral não são bem sucedidos porque são inferiores, ou como é cômodo pra um negro acreditar que não foi admitido num determinado lugar porque o dono é "racista".
Não é só a vaca que sobe o morro pelo caminho mais fácil. Nós também. Todos nós. É necessário um esforço muito grande pra se ver livre de vez em quando dos efeitos daninhos deste hábito. E não só esforço. Em grande parte depende também do acaso. É só por acaso que surge um fato novo e alguém se dá conta de que pode estar errado, que se dá conta que talvez (apenas talvez) suas crenças não reflitam da maneira mais fiel o que realmente acontece. Pra isso é necessário se expor a fatos novos e diferentes, sistematicamente. A mente se fecha sozinha. Temos que nos esforçar pra mantê-la aberta.
Porque somos assim? É uma característica natural do ser humano não ficar questionando suas próprias crenças, afinal, se ficássemos questionando todo o tempo não teríamos o ímpeto necessário pra seguir adiante. Você sabe melhor do que eu que pra se conseguir atingir um objetivo é necessário acreditar que o esforço é válido, acreditar que estamos certos.
Sacerdotes são gente, como eu e você, caro amigo. Apesar de lidar com assuntos que dizem respeito à intimidade das pessoas, aos seus problemas, os próprios sacerdotes também estão sujeitos ao modo de funcionamento do ser humano. Eles também sobem o morro pelo caminho mais fácil. Cada um por sua vez acredita no que lhe convém. Imagine um rapaz, sem muitas oportunidades na vida, que de uma hora pra outra torna-se pastor numa destas organizações. Devido à posição e aos novos hábitos (vestir-se bem, falar melhor, etc) surgem oportunidades que ele nunca tivera. Passa a ter uma bela esposa, morar numa residência digna, ter um carro à sua disposição, ter influência sobre uma comunidade e o respeito dela. Acima de tudo, acredita que está fazendo "a obra de Deus", ou seja, está empregando sua vida dentro do mais abrangente projeto de todos os tempos. É bom ou não é?
Quando eventualmente se depara com a questão íntima "será que eu mereço estar aqui?" se ampara na confiança de que "não há uma só folha que caia de uma árvore sem que seja da vontade de Deus".
Quando se vê diante da obrigação de pedir ofertas pesadas pra pessoas que já estão em condição de extrema penúria lembra daquele profeta do antigo testamento (me fugiu o nome dele) que pediu à uma viúva que usasse sua última porção de farinha pra que lhe fizesse um bolo. Melhor: sente que além de tudo tem "autoridade" conferida por Deus.
Quando eventualmente se depara com algum caso dentre os muitos, de pessoas que se esgotaram financeira ou emocionalmente na congregação, pensa que "a fé dela não foi suficiente, isso é entre ela e Deus. Eu fiz minha parte".
Seguindo esta tendência é natural que ele se sobressaia como captador de recursos. Para uma organização com grandes despesas como é uma igreja de porte, um bom captador de recursos é importante. Desta maneira, como estas organizações geralmente têm vários níveis administrativos (como "Auxiliar de pastor", "Pastor", "Líder regional", "Líder estadual", "Líder nacional", etc), é de se esperar que os elementos com melhor performance acendam nesta escala. Sendo assim, quanto menor for seu questionamento, mais o elemento é "premiado" com promoções.
Agora vamos ao caso mais extremo: imagine um líder religioso que tem uma coleção de carros importados enquanto boa parte da legião de fiéis de uma organização passa por problemas de ordem financeira e emocional.
Quanto aos problemas de ordem emocional, o dirigente acredita estar fazendo sua parte, pois dirige uma organização religiosa, que deve se incumbir de cuidar das pessoas. Ele não pode cuidar diretamente de um por um em função do seu tempo escasso. Quanto aos problemas de ordem financeira, "isso vai da fé de cada um".
Uma organização de porte deve ter uma reserva. Não pode depositar todos os seus recursos financeiros numa só aplicação. É normal que se imobilize uma parte, adquirindo imóveis e outros bens de alto valor que possam ser vendidos em caso de necessidade. "Quem melhor que o próprio dirigente da organização pra ficar como depositário destes recursos?" E "pra que ele moraria numa casa pequena se estes imóveis estão disponíveis?", pra que ele andaria de fusca se estes veículos fazem parte do ativo da organização e estão sob sua responsabilidade? Será que sua esposa, filhos e filhas não merecem um pouco de comodidade, uma vez que são freqüentemente alvo de críticas "injustas" por sua causa?
E dentro de todo este cenário, se um dia ele tiver a capacidade de questionar por um momento a si mesmo (o que é pouco provável) sobre a validade de tudo isso, vai se amparar na máxima que diz que o universo é de Deus, que foi feito por ele e que, sendo Deus dono de tudo, é justo e natural que destine uma parte disso a quem dedica sua vida à "obra de Deus".
E isso não é ser maldoso, não é intencionalmente prejudicar ninguém. É apenas ser humano. Humano como eu e você. Só que em circunstâncias diferentes.
Esta é, a grosso modo, a maneira que eu entendo, caro amigo.
Em conclusão, como viu, surpreendente quanto isto seja para uma Testemunha, a "guerra teocrática" ou "estratégia teocrática" das Testemunhas de Jeová não é muito diferente da das outras religiões. O Vicente Fragoso tem agora pelo menos um ponto de partida na sua busca da solução desse enigma.
Notas
[
1] Clique aqui para ver a carta enviada aos anciãos das Comissões de Ligações com Hospitais. E aqui para uma discussão dessa carta, debaixo do subtítulo Dateline: June 20, 2000.
[2] É comum as Testemunhas de Jeová de baixo escalão pensarem que a secretividade das Comissões Judicativas serve para proteger a privacidade da pessoa sendo julgada. Muitas ficam surpresas quando descobrem que não são poucos os casos em que o "réu" até prefere ter observadores neutros nas reuniões judicativas. Isso porém, por motivos óbvios, não lhes é permitido.